quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Da Inversão do Ônus da Prova em Direito do Consumidor

Conceitualmente, no âmbito do Direito Consumerista, a inversão do ônus da prova é uma facilitação dos direitos do consumidor e se justifica como uma norma dentre tantas outras previstas no Código de Defesa do Consumidor para garantir o equilíbrio da relação de consumo em face da reconhecida vulnerabilidade do consumidor.


O ônus de provar, por si só, é uma questão que desperta a atenção dos juristas quando da sua aplicação prática e, quando se trata de sua inversão, diversos pontos de divergência surgem.

Inicialmente, destacamos que o ônus da prova não pode ser visto como uma obrigação, mas uma necessidade. Quando se fala que o ônus da prova incumbe a quem alega, se quer dizer que a parte tem a possibilidade de agir conforme o comando jurídico para conseguir que sua pretensão seja atendida. Isto é, como ela tem o interesse de que seja reconhecida a verdade dos fatos que alegou, logo é sua incumbência provar suas afirmações.

A obrigação apresenta aspecto diferente, não é uma faculdade, mas uma imposição de um comportamento e não cumpri-lo gera um ilícito jurídico. O nosso código processual vigente, em seu artigo 333, distribui o ônus da prova pela posição processual em que a parte se encontra. Ao autor compete provar o fato constitutivo do direito que afirma possuir. E ao réu, apenas, se aduzir em sua defesa fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito alegado pelo autor.

A distribuição do ônus da prova, entretanto, não está ligada tão somente aos interesses das partes de verem reconhecidos os fatos que alegaram como fundamento da ação ou da exceção, mas também se destinam à formação do convencimento do magistrado.

Assim, o princípio que norteia o procedimento probatório é o princípio da iniciativa das partes, visto que a indicação das provas é ato de iniciativa das partes interessadas na demonstração da verdade dos fatos articulados nos autos. No entanto, esta iniciativa não é exclusiva, pois concomitantemente se aplicam os princípios da autoridade e o da iniciativa oficial. O primeiro confere ao juiz o comando do processo (art. 125, CPC), que, por conseguinte é quem dirige a instrução probatória. O segundo se encontra em vários dispositivos do Código de Processo que prevêem o impulso oficial em diversas situações.

O que não se pode perder de vista é que regra é que as provas sejam propostas pelas partes. A iniciativa oficial deve ocorrer, apenas, quando necessária, e na maioria das vezes de forma supletiva, uma vez que o magistrado não pode com a iniciativa oficial querer suprir a iniciativa das partes.

Caso o juiz ordene, de ofício, a produção de prova, deve em seu despacho justificar tal ato, indicando os motivos que o levaram a essa determinação. Isto porque, o juiz na direção do processo deve ser imparcial e garantir a igualdade de tratamento às partes. Pois, a cada prova produzida por uma das partes, cabe a parte contraria ser ouvida dando-lhe a oportunidade de contestar a prova.

Outro ponto a se destacar é que o ônus da prova é regra de julgamento, já é aplicado no momento da decisão da demanda. Assim, o juiz pode se valer para proferir um provimento equânime e legítimo dessas regras no caso de incerteza. Visto que, como consequência de não ter a parte cumprido o ônus que lhe foi incumbido poderá ela ver sua pretensão jurídica negada.

Ocorre que o Código de Defesa do Consumidor hão de ser observadas particularidades. Os dispositivos processuais do Código de Processo Civil que se aplicam ao autor e ao réu, notadamente os pontos que assegurem o cumprimento da garantia constitucional da ampla defesa e do contraditório, são aplicáveis na tutela jurídica da relação de consumo.

É certo que, os dois pólos da relação de consumo (consumidor/fornecedor) são compostos por partes desiguais em ordem técnica e econômica, visto que o fornecedor possui, via de regra, a técnica da produção que vai de acordo com seus interesses e o poder econômico superior ao consumidor. A vulnerabilidade do consumidor é patente, e a sua proteção como uma garantia é uma conseqüência da evolução jurídica pela qual passamos.

Neste ponto, a inversão do ônus da prova vem melhor equilibrar essa relação, sendo um direito conferido ao consumidor para facilitar sua defesa no processo civil e somente neste. A aplicação deste direito fica a critério do juiz quando for verossímil a alegação do consumidor, ou quando este for hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiência (artigo 6º, inciso VIII, do Código de Defesa do Consumidor).

A regra do ônus da prova insculpida no Código de Processo Civil é rígida. Contudo, o juiz pode aplicar a inversão do ônus da prova em favor do consumidor desde que preenchidos um dos requisitos esposados no artigo 6º, inciso VIII, do Código de Defesa do Consumidor com o objetivo de equilibrar a relação processual.

Assim, se o magistrado constatar que estão presentes um dos requisitos para a inversão do ônus da prova, após verificar segundo as regras de experiência que as alegações do autor são verossímeis ou que o consumidor é hipossuficiente inverterá o ônus da prova em favor do consumidor. A inversão do ônus da prova como uma modalidade de facilitação da defesa dos direitos do consumidor somente deve ser admitida quando um dos seus requisitos forem satisfeitos, ou seja, a verossimilhança das alegações ou a hipossuficiência do consumidor.

Aqui, abordaremos o ponto de maior divergência doutrinária acerca da aplicação da inversão do ônus da prova: em que momento ela se dará?

WATANABE considera que “(...) somente após a instrução do feito, no momento da valoração das provas, estará o juiz habilitado a afirmar se existe ou não situação de no ‘liquet’, sendo caso ou não, consequentemente, de inversão do ônus da prova. Dizê-lo em momento anterior será o mesmo que proceder ao prejulgamento da causa, o que é de todo inadmissível”.

Observe-se que o ilustre doutrinador, por seu posicionamento, não vislumbra nenhuma ofensa ao princípio da ampla defesa e ao final endossa que “(...) no despacho saneador ou em outro momento que preceda a fase instrutória da causa, o magistrado deixe advertido às partes que a regra de inversão do ônus da prova poderá, eventualmente, ser aplicada no momento do julgamento final da ação. Com semelhante providência ficará definitivamente afastada a possibilidade de alegação de cerceamento de defesa”.

Há o entendimento doutrinário contrário. JOÃO BATISTA DE ALMEIDA entende que o momento para o deferimento da inversão deverá ocorrer entre a propositura da ação e o despacho saneador, sob pena de prejuízo para a defesa do réu.

RIZATTO observa que a polêmica em torno do momento processual para aplicação da regra da inversão do ônus da prova se dá em razão da falta de rigorismo lógico e teleológico do sistema processual instaurado pelo Código de Defesa do Consumidor. E se opõe ao entendimento de que o momento da aplicação da regra de inversão do ônus da prova é no julgamento da causa, afirmando que esse pensamento está alinhado com a distribuição legal do ônus da prova que é uma regra que exprime certeza (artigo 333, do Código de Processo Civil). O processo fora da relação de consumo não exige que o juiz faça qualquer declaração a respeito da distribuição do gravame. Basta levá-lo em consideração no momento de julgar a demanda. Não existe surpresa para as partes quanto a quem compete a produção da prova. Já a lei consumerista não expressa essa certeza, uma vez que a inversão prevista no artigo 6º, inciso VIII não é automática, posto que fica à critério do juiz quando for verossímil a alegação ou se for hipossuficiente o consumidor

Portanto, é preciso que o juiz se manifeste para se saber se o elemento verossimilhança está presente ou se a hipossuficiência do consumidor, conforme o caso concreto, foi reconhecida. Conclui aquele autor que “(...) o momento processual mais adequado para a decisão sobre da inversão do ônus da prova é o situado entre o pedido inicial e o saneador. Na maior parte dos casos a fase processual posterior à contestação e na qual se prepara a fase instrutória, indo até o saneador, ou neste, será o melhor momento”.

Já VOLTAIRE DE LIMA MORAES não concorda que a inversão seja decretada “ab initio”, quando o juiz analisa a petição inicial, pois sequer houve manifestação do demandado, não podendo precisar a dimensão da sua resposta, muito menos os pontos controvertidos. Acreditando ser imatura a decretação da inversão nessa fase do procedimento. Não concorda, também, com a decretação no momento da prolação da sentença, pois não vê a inversão processual como regra de julgamento. A inversão envolve questão incidente a ser efetivamente resolvida por ocasião da fase instrutória, sob pena de não se permitir ao fornecedor que se desincumba desse ônus que lhe foi judicialmente imposto, com prejuízo, inclusive para o exercício da ampla defesa, concluindo que “(...) o momento adequado para a decretação da inversão do ônus da prova dar-se-á por ocasião do saneamento do processo, quando, inexistosa a audiência de conciliação, o Juiz tiver fixado os pontos controvertidos, aí sim, em seguimento, decidirá as questões processuais pendentes, dentre as quais o cabimento ou não da inversão do ônus da prova (art. 331, § 2º, do CPC), ficando dessa forma cientes as partes da postura processual que passarão a adotar, não podendo alegar terem sido surpreendidas, especialmente aquela que recebeu o encargo de provar”.

Nossa opinião, salvo melhor juízo, se coaduna com a tese de que o momento processual mais adequado é entre a propositura da ação e o despacho saneador, preferencialmente, no próprio despacho saneador, posto que não existirá um elemento supresa para as partes, já que estarão cientes através do pronunciamento do juiz a quem compete o ônus da prova.

A providência de se advertir que no momento do julgamento da ação as regras de inversão do ônus da prova podem ser aplicadas não afasta o cerceamento de defesa.

O instituto processual da inversão serve para facilitar a defesa do consumidor e por conseqüência onerar a defesa do fornecedor. Este último tem o direito de saber, já que não existe uma certeza legal, se a incumbência do ônus da prova é sua, ou não, antes que se proceda a instrução e julgamento do processo, caracterizando-se a inversão do ônus da prova muito mais como matéria de instrução do que como técnica de julgamento, haja vista que a apreciação da verossimilhança das alegações ou da hipossuficiência do consumidor não implicam num prejulgamento da lide já que a verossimilhança é aparência da verdade, não exigindo a certeza da verdade, enquanto que a hipossuficiência é examinada através da capacidade técnica e informativa do consumidor, de suas deficiências neste campo para litigar com o fornecedor que por sua condição é detentor das técnicas.

Logo, a determinação prévia estabelecerá tão somente que o réu tem o ônus de desconstituir a aparente verdade, ou a constatação da hipossuficiência técnica do consumidor, pois a prova de uma das excludentes de responsabilidade pela reparação de danos terá que fazê-la independente de inversão.



Referências bibliográficas:



WATANABE, Kazuo, Anotações de palestra proferida no XXI Encontro Nacional de Defesa do Consumidor, ocorrido em João Pessoa/PB, em 21.06.01.

ALMEIDA, João Batista de. A Proteção Jurídica do Consumidor, 2a ed., São Paulo: Saraiva, 2000.

RIZZATTO NUNES, Luiz Antônio. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor, Direito Material (arts. 1a a 54), São Paulo: Saraiva, 2000.

CARVALHO, Micheline Maria de. A Inversão do Ônus da Prova no Direito Consumidor, “in” www.datavenia.net, publicado em dezembro de 2001, acesso em 08/10/2009.

FERRAZ, Luiz Carlos. Momento processual da inversão do ônus da prova. Jus Navigandi, Teresina, “in” http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=2160>, acesso em 08/10/2009.

DALLASTA, Viviane Ceolin. Momento processual para a inversão do ônus da prova no Código de Defesa do Consumidor, Site do Curso de Direito da UFSM. Santa Maria-RS. Disponível em: http://www.ufsm.br/direito/artigos/consumidor/inversao-prova-cdc.htm, acesso em 08/10/2009.

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